sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ESTES GAULESES SÃO DOIDOS!

As coisas nem sempre correm como gostaríamos. Condição sine qua non que nos acompanha ao longo da vida.
O meu gosto pela hepatologia, como parte integrante da Medicina Interna vem desde há muito tempo. Virtude do grande número de doentes que temos nas urgências, nas consultas, no internamento, virtude do desafio do diagnóstico aquando da sua apresentação como forma aguda e grave que motiva intervenção atempada e que pode culminar no transplante hepático, virtude do gosto especial que temos pelas coisas sem as conseguirmos explicar muito bem (porque é que uns gostam mais do preto e outros do branco?), enfim, virtude do doente ser um todo, e o fígado uma das suas partes constituintes.
Foi este gosto pela hepatologia que me levou, já há mais de um ano, a propor-me a um estágio nesta área da Medicina no meu hospital, dado ser um dos 3 centros em Portugal de referenciação de doentes com doença hepática, pelo simples facto de lá fazermos transplantação de fígado. Nessa altura, e por indicação de uma colega que intervém nesta área, propus-me a fazer esse mesmo estágio num local de referenciação Europeu, que é o Hôpital Beaujon. Vim, então, a Paris, falei com o director de serviço de cá, "acertámos" agulhas, e iniciei o processo para que tal estágio se viesse a concretizar.
Devo-vos dizer que um dos papéis tem 5 (!) assinaturas diferentes, e que as burocracias, ainda em Portugal, foram muitas. É necessário um papel a propormo-nos para fazer o estágio, o papel com as assinaturas de Y + B + Z + X + A..., o papel para a equiparação a bolseiro (que demorou eternidades para ser assinado), o papel que vai para a ordem dos médicos, o papel que segue para o Colégio da especialidade, o papel que vai para o Ministro, enfim... Tudo parecia, no final, bem, para que, após a aprovação do meu estágio e o reconhecimento da sua idoneidade, pudesse vir, em paz e sossego trabalhar para terras de vocês já sabem quem: Carla Bruni-Sarkozy.
Claro está que já imaginava serem necessários outros papéis para apresentar aqui no hospital, apesar de nunca me terem sido formalmente pedidos quer pelo secretariado do Serviço quer pela Instituição em si.
Quando fui à secção de pessoal do Hôpital Beaujon (doravante denominado como HB) foi como uma banhada de água fria (a 1ª), já que me disseram que, para ter equivalência a FFI (qualquer coisa como, traduzindo, "Fazendo Função de Interno), necessitava, e passo a citar, e em Francês que é para ser mais concreto:

PIECES A FOURNIR POUR ETRE FAISANT FONCTION D'INTERNE

1. Lettre de proposition de candidature du chef de service (ok, este ítem está resolvido, porque já a tenho e, graças a Deus, em Francês pois, caso contrário, eram mais 45 Euros para traduzir cada página...);

2. ORIGINAL (e está assim com letras bem gordas) du diplôme de Docteur (chique, heim?!) en médecine et sa traduction par un traducteur assermenté (arranjei um tradutor, que me vai traduzir, para 2ª feira, os 2 documentos originais que trouxe: um deles, é um papel, azul, 25 linhas, da Ordem do Médicos, a dizer como sou "Docteur" e estou inscrito na ordem; o outro, passado pelo Hosp. Sto António, a dizer que concluí o internato geral com aproveitamento - como podem ver, nenhum dos dois é o "diplôme de Docteur" mas, digo eu, se tenho os dois em meu poder, significa que já sou "Docteur", ou será que não? - Seja como for, desembolsei apenas 90 Euros para a sua tradução...)

3. Le passeport et la carte de séjour en cours de validité (tenho as duas, ufa!)

4. Autorisation provisoire de travail en cours de validité pour les étudiants ayant déjà effectué un ou plusieurs de semestres (não tenho nada disto, mas o pessoal da secretaria disse para não me preocupar...)

5. Un extrait du casier judiciaire Nº2 datant de moins de trois mois. (Acho que nas 3 semanas em que estou em Paris ainda não cometi qualquer infracção - grave - à lei... já tenho o papel, mas tenho que o preencher. Seja como for, seria sempre possível requisitá-lo pela net. Ítem à partida com luz verde, apenas dependente de não fazer asneiras nos próximos dias...)

6. Le livret de famile ou un extrait d'acte de naissance (si vous êtes célibataire) (Ora, os franceses têm um hábito incrível, que é o de por, não como as galinhas, ovos, mas sim, em qualquer papel que se peça em qualquer sítio, se somos "célibataire" - palavra feia para "solteiro" e, se não o formos, temos uma quantidade de ítems a preencher, portanto, mais vale continuar "célibataire". Este ponto também já está com luz verde, já que o pai deste escritor se desenvencilhou, em Portugal, para obter o "extrait d'acte de naissance" que, neste momento, deve estar a meio caminho entre Portugal e França).

7. Un curriculum vitae détaillé à partir du début des études médicales (références, attestations de stage, spécialit, exposés titres et travaux) (Como devem imaginar, vai ser um dos meus trabalhos do fim-de-semana - traduzir o meu curriculum... fico na dúvida se devo, ou não introduzir a minha experiência nas artes nocturnas da cidade do Porto, se é que me faço entender...)

8. Un certificat de vaccinations mis à jour (Hépatite B, diphtérie, tétanos, poliomyélite) (Haja Deus e a mãezinha que disse "Meu rico filho, olha que é melhor levares o boletim de vacinas, nunca se sabe..." O que vale é que não mo pedem traduzido pois, caso contrário, a 45 euros a folha, ficar-me-ia um pequeno balúrdio!)

9. La carte d'assuré sociale (disseram para não me preocupar, pois a entidade patronal tratará do assunto. Assim o espero!)

10. Attestation de domicile, contrat de bail (já há! - luz verde!)

11. Un relevé d'indentité Bancaire (ainda não tenho nenhuma conta bancária, mas hei-de ter; julgo não ser o passo limitante...)

12. 4 photos d'identité noires et blaches (já me estou a imaginar, qual Amélie Poulin, a brincar no Photomaton!)

13. Une enveloppe timbrée (tarif normal) à vos noms et adresses (se dependesse de "la tante", já estava cheio de envelopes timbrados, de correio azul, verde, vermelho, das cores que quisessem! Aproveito para deixar aqui uma homenagem a "la tante", por tudo...)

E agora, caros leitores, a VERDADEIRA PALHAÇADA E O PASSO LIMITANTE:

14. La carte d'étudiant en cours de validité faisant ressortir l'UFR et le diplôme (AFS ou AFSA) (bom, neste país, os internos têm de estar inscritos na faculdade... isto é, eu terei de estar inscrito na faculdade, naquilo que estes idiotas chamam de "le troisième cycle"! Barafustei, resmunguei, disse que já era médico, que não era estudante, que essa bela fase da minha vida já tinha passado e que agora, além de médico, também era professor na faculdade - dá sempre outro impacto... - admito que as senhoras da secretaria - que entretanto já eram duas - ficaram um bocadinho incomodadas, pois não sabiam o que dizer!)

Bom, este 14º passo levou-me, hoje, até ao número 15 da Rue de l'école de Medicine, para saber o que tinha de fazer para me inscrever na dita Faculdade de Medicina. Admito que fui mal recebido, e que me passaram um "papelete" - isso mesmo, um "papelete", um pequenino papel, mal amanhado, com uns dizeres em francês e um endereço da internet, para o qual vos remeto: http://www.fmpmc.upmc.fr lá, no site, deverão ir a "Formations" e, depois, "Le troisième cycle". Aí, vêem a variedade de coisas nas quais me posso inscrever mas, aquela que julgo ser a pertinente, é a AFS. Claro está que me pedem outra quantidade enorme de coisas e, no fim... O PAGAMENTO DE UMA PROPINA DE QUATROCENTOS E CINQUENTA E TAL EUROS!!!!!
ESTES GAULESES ESTÃO LOUCOS!!!!
Claro está que devem imaginar o meu espírito, não?! Este sim, é o verdadeiro passo-limitante! Portanto, caros leitores, devo-vos dizer que este humilde companheiro de "quase todos os dias" voltou à escolinha... (ou vai voltar, assim o espero!) Claro está que também espero, com isto, ter benefícios fiscais no próximo ano, e descontos para estudante no acesso aos museus e tudo! Até já estou a pensar tirar o cartão de amigo de Serralves de estudante, vejam só!

Bom, como devem estar a ver, parte do meu fim-de-semana vai ser passado a "curricular". Contudo, além das compras que tenho de fazer para a casa (já não tenho mais mercearia...), quero ver se me vou "promenar" por Paris.

Bien à vous,
Fil

PS: Agradeço os votos de coragem. Mas o facto é que, se já no nosso país as burocracias são o que são, tratar das mesmas coisas num país diferente, numa língua diferente não é, de forma alguma, uma boa maneira de se dar as boas-vindas!

2 comentários:

RuiM disse...

"Experiência nas artes nocturnas da cidade do Porto"??? Não, acho que não te estás a fazer entender! Algo que a malta deveria saber?

Unknown disse...

Sim!... Algo que a malta deveria saber?
Artes?! Ou estás a falar das tuas incursões pela cidade do Porto, tarde, muito tarde, junto de uma população de trabalhadoras muito específica, a espalhar a Arte da higiene e da promoção da saúde individual e da população masculina em geral?
Se for isso...Quanto a incluir no curriculo... não sei!... Achas?!...

Pat